Quatro horas da tarde, o relógio apita. É hora de ir para
casa. O garoto sai do trabalho e percebe que de todos os lugares no mundo, o
único em que não gostaria de estar é em casa, assombrado por seus maiores
medos. Embaixo da cama, um monstro de três metros de altura: a solidão. Sobre
cada objeto, o sangue do herói: a amargura. Junto à janela, uma trilha sonora
arrepiante: a tristeza.
O garoto lembra de seu filme de terror caseiro e suspira. Um daqueles suspiros longos, cansados, de dar dó. O colega pergunta se está estressado ou triste. “Não, é só dor de cabeça”, responde. Pega a mochila pesada, abaixa a cabeça e sai andando, com o peso do mundo nas costas.
O garoto lembra de seu filme de terror caseiro e suspira. Um daqueles suspiros longos, cansados, de dar dó. O colega pergunta se está estressado ou triste. “Não, é só dor de cabeça”, responde. Pega a mochila pesada, abaixa a cabeça e sai andando, com o peso do mundo nas costas.
Anda distraído, mas com cuidado. São tantos lugares para
evitar que fica difícil não se manter atento. Isso, é claro, graças ao Medo de
altura. Não pode passar por viadutos e nem jamais subir em passarelas. Não pode
subir em prédios altos e nem embarcar em elevadores. Mesmo que a altura não seja
presenciada, o menino sente suas garras o puxando para o abismo.
Transfere a vista para o céu e olha os prédios tocando as
nuvens, aqueles gigantes com milhares de andares. Pergunta se algum dia será
capaz de subir nas torres de marfim e ver o mundo de cima. Mas sabe que mesmo
se estivesse no topo, ainda estaria abaixo do mundo. De tudo e de todos. “Se
dependesse de mim, Rapunzel ficaria trancada para sempre”, pensa.
Um sorriso surge ao lembrar da infância, quando o Medo não o
consumia e era capaz de subir em prédios altos e frios. Ele adorava olhar para
baixo e cuspir, simples assim. Não havia adrenalina maior do que ver o cuspe
cair torre abaixo, procurando um transeunte desavisado. Nojento e maldoso, mas
divertido. O que chegaria primeiro ao chão, o cuspe ou o elefante? Já sei o que
caiu e sangra na calçada: os sonhos do menino.
Esquece o Medo ao notar as pessoas, que andam apressadas
pela rua. Avista algumas felizes e outras de mau humor. Nota a bondade e a má
vontade. Vê mendigos e pergunta para si o que eles fizeram para estar ali: “mataram
alguém, foram expulsos de casa, são loucos? Ou simplesmente quiseram morar na
rua?”. É improvável que alguém opte por morar livremente em um lugar como este.
Mas não é impossível. O menino repara principalmente nos pés dos mendigos:
negros de sujeira, brancos de poeira, cheios de rachaduras e feridas. São pés muito
tristes.
No caminho vê um antigo colega de trabalho. Segue em frente
e finge ser cego, pois a força para parar e conversar não existe, muito menos a
vontade de ser simpático com alguém que não há intimidade. Mais à frente esbarra
em uma moça de sua van escolar. Dessa vez se anima para trocar um sorriso, mas ela
passa direto feito vara verde. Não viu o menino ou fingiu que não viu? Eis a
questão. É o troco da vida por se fingir de cego quando dá vontade.
Além do Medo, as ruas guardam outro soco no estômago: os
lugares-lembrança. Esses talvez doam mais do que a altura. Naquele ponto de
ônibus, o garoto deu seu primeiro beijo de amor. Debaixo daquele viaduto, foi
feliz como nunca se sentiu antes com seus amigos. Naquela mesa de bar, ouviu o
primeiro “eu te amo” sincero, direcionado especialmente a ele. Tudo isso
passou? Ele sente que sim, mas não tem certeza.
As lembranças doem, principalmente essas incertas, que podem
voltar a qualquer instante ou nunca mais. Está certo amar alguém e se sentir
sempre sozinho? É correto ter amigos e não ter ninguém quando precisa? Deixar
um amor ou um amigo sofrer deveria ser proibida por lei, com direito à multa milionária e
risco de prisão perpétua. “Até quando?”, ele pergunta.
Continua a andar e se vê na Praça, aquela que tanto gosta, cheia
do verde e do azul. Felizmente, o mundo ainda não conseguiu estraga-la. Como o
garoto sempre vai até ela sozinho, sozinho ele sempre vai se sentir, e ela não
será um lugar-lembrança doloroso. Senta em um dos únicos bancos livres, de
madeira branca e encardida. Um banco aquecido pelo sol do fim de tarde.
Só fecha os olhos e respira. Respira fundo e devagar. Abre
os olhos e vê casais e famílias. Homem-mulher. Mulher-homem. Homem-homem.
Mulher-mulher. Crianças correndo para todo lado. Um menino anda de bicicleta e vira
em uma curva errada. O pai grita lá de longe, para a criança ficar por perto.
Um cachorro e seu dono passam com uma coleira cor de rosa. O dono xinga pela
hiperatividade do bicho e ordena que ele pare de se mexer tanto.
Há também as pessoas solitárias, que nem o menino. Um velho
em um banco por perto olha tudo com olhos marejados. Sabe-se lá o que está
pensando. Ele é negro, de barba branca, bota preta nos pés e camisa social
branca. Ele começa a mexer na bota, tira os cadarços. Tira a bota, coloca o pé
no chão. Tira as meias pretas e sente o chão com os dedos. A pedra, a terra, a
sujeira.
Surge uma moça com dentes pontiagudos, andando descalça pela
praça. Dá medo. “Quem tem dentes assim?”, sussurra o menino. São pontiagudos e
separados. Pode ser um duende disfarçado, pois também tem orelhas pontudas. Ela
vende trevos de quatro folhas para dar sorte, e o dinheiro será para ajudá-la
em sua estadia na cidade, já que vem de longe. O garoto recusa gentilmente,
pois nunca teve sorte e nem nunca terá. Um trevo com certeza não vai ajudar.
Vem um moço que parece bruxo disfarçado, chapéu alto na
cabeça, com a ponta alcançando o céu. Ele traz uma lata com cookies de
chocolate. “Ainda tem um ingrediente especial”, diz ele, sorrindo de lado. O que
será? Talvez o garoto precise justamente de um ingrediente especial em sua
vida, mas recusa. Sabe-se lá de que lado da força se encontra o bruxo, e se o
ingrediente vai fazer mais mal do que bem.
Aparece uma mulher bonita, parecida com uma andorinha-do-campo.
Tudo porque assobia lindamente, como um pássaro, aquecendo os corações. Também é
miúda e pequena, delicada como penas. Vende brigadeiros confeitados,
que prometem trazer lembranças de casa e sonhos já perdidos. Esse o menino
compra, sem pensar. Era o que queria.
Ele espera a andorinha sair para comer, pois sente vergonha de fazer isso em sua frente. Ele dá uma mordida e lembra da mãe. A mãe que ama e está em
outra cidade, distante. Dá a segunda mordida e lembra dos amigos. Ele também
ama os amigos, mesmo que nenhum deles esteja por perto. Nunca estão por perto.
Dá a terceira mordida e lembra de quem ele ama mais. Que está com ele apenas quando
quer. O doce acaba. O sangue do herói respinga o chão.
Uma lágrima solitária cai pelo olho esquerdo. Tudo nele tem
que ser solitário. Dá um adeus ao mundo e deita no banco para dormir. Às vezes
vai acordar daqui a 15 minutos. Às vezes nunca mais vai acordar. Essa é uma de
suas maiores vontades.
Marcadores: Crônica
Postar um comentário