Era uma vez uma cidade, pequena e velha apenas como cidades permeadas por segredos conseguem se assemelhar. Imemorial como a cidade, um parque se encontrava em seu centro, com uma figura sempre certa habitando seu interior, sem nunca deixar o local ou transpor seus limites. Pelos bancos de concreto, sentada na grama verde e macia, ou até mesmo dentro do lago azul e límpido, tudo era parte da morada da velha senhora dos pés descalços. Desde um passado impossível de ser recordado, lá estava ela em um mundo próprio de delírio e fantasia. 

A velha usava um vestido longo, há muito sem cor ou forma. Rasgado aqui e ali, esfarrapado em todas as extremidades, era um manto sujo em um corpo esquelético. Observado com atenção, poderia ser julgado como requintado e luxuoso décadas atrás, mesmo que no presente fosse nada mais do que trapos repulsivos. No pescoço, uma joia velha, com um brilho tímido. E os pés, sempre descalços, quase um couro grosso e sujo, sentia a terra entre os dedos, a maciez da grama, a água gelada do lago.

Um corvo negro era sua mascote constante, pousado nos ombros da velha a crocitar pedindo carinho. Havia quem dissesse ser a velha uma grande bruxa, pois bruxas eram sempre vistas com corvos negros nos ombros. Mas o corvo era bondoso, dedicando sua vida em função da senhora, sempre a roçar devagar o pequeno bico pelo rosto cheio de rugas. O coração do corvo há muito havia sido ofertado a ela.

Um cão manco e magrelo, com os ossos a aparecer, também lá vivia com a velha. Chafurdava as lixeiras, levando restos de comida para ela, que atirava gravetos e paus caídos das árvores para que ele fosse buscar. Era uma brincadeira constante, que fazia a velha soltar ternura sincera pelo ar.

Para completar a cena de amizade, dentro do lago viviam os mais variados peixes, de todas as formas e cores. A velha se encantava com eles, e eles se encantavam com a velha. Dançava pelo lago com seus pés descalços, ao sabor do vento, agitando os braços. E os peixes nadavam e também dançavam dentro d’água, a acompanhar a música silenciosa que tocava apenas no interior do coração da velha.

A tudo os moradores da cidade observavam, aquela população que se dizia normal, vivendo uma rotina tão eterna quanto parecia ser a vida da velha. Esta não trabalhava, nem tampouco mendigava. Solidários a tal situação, a população levava comida e bebida necessárias para sua sobrevivência. Se ninguém por lá chegasse, a velha ficava pelos dias sem comer, talvez desfrutando apenas de algo que o cachorro magrelo conseguia surrupiar das latas de lixo.

Sempre havia a velha. Sempre havia um corvo nos ombros. Sempre havia o cachorro magrelo. Sempre havia peixes a dançar.

Até que o sempre deixou de existir, quando a velha dormiu tanto, por tanto tempo, que alcançou a sanidade. Senhora de si, assustou-se com sua condição atual ao lembrar quem era e como era a vida no passado. Uma lagarta sussurrou por seus ouvidos:

- Acompanhe a seta vermelha. Siga o homem do nariz de luz.

E a velha viu a seta se desdobrar por seus olhos, e seguiu o homem, que andava devagar por toda a extensão do parque. Era seu amado marido, morto há tantas décadas atrás, e ela o seguia com prazer. A cada passo, a velha se tornava mais nova, mais limpa, mais próxima do que era antigamente. O vestido foi se tornando novo, luxuoso e cheio de cor. A joia passou a brilhar intensamente como uma estrela. As rugas desapareceram pouco a pouco, como linhas de um bordado se desfazendo devagar. E então, a velha não era mais velha. Era uma moça jovem, bonita, com a vida em seus pés, calçados com sapatos de veludo. E dançou com seu amor, sorriu em conjunto, foi feliz em demasia. Estava de volta ao passado. 

No dia seguinte, estavam pelo parque o corvo, o cachorro e os peixes, desconsolados. A velha parecia dormir, mas não mais se mexia. Um sorriso quente estava no rosto, mas os pés, sempre descalços, estavam mais frios do que nunca, como rochas congeladas. Mas a velha, assim como havia vivido uma eternidade em um futuro de loucura, havia guardado uma eternidade para descansar na felicidade do passado. E essa eternidade, para sempre iria durar.

História inspirada na pintura de Paul Klee, A Young Lady's Adventure (1922).