O dia estava normal como todos os outros. Lá estava o sol subindo devagar pelo horizonte, as árvores a balançar ao sabor do vento da manhã, as pessoas sonolentas saindo de suas casas para trabalhar. Tudo estaria normal, se não fosse o garoto na mais alta torre da cidade, que começou a enxergar o mundo de forma diferente. Da noite para o dia, as cores fugiram de seus olhos. Nada mais do azul do mar ou o verde da esperança. Era apenas o preto, o branco e o cinza, as cores do silêncio, do vazio e da falta de vida.

Sem saber o que fazer, o garoto resolveu fugir. Desceu da torre rápido como um raio, e se viu frente à grande porta de entrada. Assim que colocou o pé para fora, uma música começou a tocar em seus ouvidos. A música não era triste nem feliz. Era uma música estranha, assim como o garoto se sentia. Rápida, tensa, como se algo importante estivesse prestes a acontecer. Ele olhou para o alto e para os lados, a procura da origem do som, pensando que alguém poderia estar por ali pregando uma peça em seu dia lastimável. Sua vida já era uma peça, das mais trágicas possíveis.

Um ponto de ônibus estava em frente à torre, e lá se foi o garoto sentar no banco de metal frio para esperar. Não sabia para onde iria, nem qual ônibus embarcar. Sabia apenas que naquele lugar não ficaria mais, e que pegaria o primeiro ônibus que despontasse pela rua. Até que um ônibus apareceu, levando ao garoto a primeira cor do dia. Um ônibus vermelho, da cor do sangue. Um ônibus sem volta e sem arrependimento, apenas de ida, em que o garoto embarcou sem pensar duas vezes.

Seria um ônibus normal se não fosse o silêncio sepulcral e a completa falta de outros passageiros. O motorista e o trocador sorriam, ação bem diferente do que era possível ver nos motoristas e trocadores mal-humorados do dia a dia. E o garoto se sentou bem no fundo, olhando as casas e prédios passarem rápido, rápido demais. As ruas estavam vazias e o ônibus vermelho corria como nenhum ônibus havia corrido antes.

Logo veio um túnel, o túnel que o garoto passava todos os dias para sair de seu bairro. Mas não foi como todos os outros dias, pois assim que adentrou pelo subterrâneo, a escuridão foi completa. As luzes do ônibus, que sempre se acendiam automaticamente, dessa vez não apareceram. A escuridão era negra como tinta e tão intensa que se tornou sólida, e passou a preencher todos os cantos do ônibus vermelho.

Até que a saída do túnel surgiu à distância, um ponto branco, bem pequeno, que foi aumentando rápido à medida que o ônibus corria pelo caminho debaixo de toneladas de concreto. O clarão era branco demais, doía de olhar, e o garoto precisou fechar os olhos. Quando inundado pela luz, ele foi abrindo devagar, piscando, até se acostumar com a claridade. Percebeu subitamente que o ônibus não mais corria pelas ruas, mas subia pelo céu e deixava a cidade para trás. O ônibus vermelho passava por dentro de nuvens e subia rápido, com a cidade ficando cada vez menor no mundo inferior. A incapacidade de ver cores do garoto finalmente caiu por quilômetros de altura e se perdeu no chão.

Aquela escuridão sólida que pouco antes havia preenchido todo o ônibus adquiriu forma na intensa claridade, se personificando e ganhando características peculiares. Eram seres dos mais variados tipos, com orelhas pontudas, peles nas mais diversas cores e membros a mais ou até mesmo inexistentes. Eram monstros de barbas longas, duendes de narizes pontudos, sereias fora d'água, elefantes brancos de pintas azuis. Eram seres diferentes e estranhos, assim como era o garoto.

Ele sentiu uma alegria tão grande e contagiante que ela foi capaz de se espalhar por todo o ônibus vermelho, assim como a escuridão e a claridade haviam se espalhado pouco tempo antes por todos os cantos. Os seres perceberam a felicidade e foram atingidos por ela, e acenaram com as muitas cabeças e sorriram sorrisos desdentados para ele.

O garoto logo parou para prestar atenção na música que não havia parado nem um momento sequer de tocar em seus ouvidos. Ele viu que a música não vinha de um local externo, mas soava dentro de si mesmo. Era a música das batidas em seu peito, que ecoava pelo céu azul e embalava o caminho do ônibus. Era a música das novas cores e do caminho do ônibus vermelho. E, acima de tudo, era a música do coração, a canção que mostrava ao mundo que o garoto existia e que ele procurava o seu lugar.