Na tarde daquele dia o ônibus estava lotado, assim como em todos os outros dias da semana. As pessoas eram quase esmagadas contra as janelas, segurando com força as barras de ferro para não serem arremessadas longe. Algumas delas estavam sentadas e carregavam bolsas e mochilas dos que estavam de pé, enquanto outras fingiam estar dormindo para não ceder lugar aos idosos que olhavam para os bancos com brilho nos olhos.

Eu estava sentado bem no fundo do ônibus, lendo meu livro como fazia sempre. Bastava apenas começar as primeiras palavras que esquecia de tudo o que havia em volta. Sem nenhum idoso por perto para que eu cedesse o lugar, e sem coragem para colocar no colo a mochila dos estranhos próximos, meus olhos não desviavam das páginas.

Até que dois garotos de uniforme escolar, com mochilas nas costas, subiram no ônibus e ficaram de pé bem ao meu lado. Estavam naquela idade da pré-adolescência em que pensam saber de tudo, entre os 14 ou 15 anos, mas que tudo o que possuem são coisas a aprender.

Um deles era alto, um pouco acima do peso, e conduzia uma conversava entusiasmada, falando sem parar. O outro era baixo e magro, se mostrando sorridente e repetindo, quase sempre no final das frases do colega, "pode crer". Era uma dupla no início da amizade, pois não apresentavam aquela familiaridade típica dos amigos de longa data. Mas pareciam ter acabado de sair da escola e estavam se conhecendo enquanto iam para casa.

- É estranho como a gente sempre vê alguém dentro do ônibus, e essa pessoa começa a fazer parte da nossa vida sem a gente perceber. Já reparou nisso?
- Pode crer. Quando eu pegava um ônibus pra ir pra minha escola antiga, tinha essa menina que eu via todos os dias. A gente sempre se olhava, mas nunca falei com ela.
- E por que vocês nunca se falaram?
- Não sei, acho que eu não tinha nada pra dizer. Mas eu ficava olhando pra ela, e se ela não aparecia, era como se alguma coisa faltasse no ônibus.

- O engraçado é quando estamos andando na rua e vemos uma pessoa que temos a sensação de já conhecer, mas não lembramos de onde. É bem capaz de termos nos visto dentro do ônibus e a gente nem lembrar. Imagina quantas pessoas esbarramos no ônibus a vida toda... São milhões!
- Pode crer.

- Existe essa história na mitologia chinesa que fala sobre as pessoas que são predestinadas. Você sabe que a mitologia chinesa é a mais foda, né?
- Pode crer.
- Pois é, aí essa lenda diz que quando as pessoas nascem, os deuses colocam um fio vermelho de lã amarrado no dedo de cada um, fazendo com que cada pessoa tenha uma alma gêmea que vai estar ligada pelo fio vermelho por toda a vida. Quanto mais feliz é a pessoa, mais curto é o fio e mais perto ela está da alma gêmea.
- E você acredita nisso?
- Olha só, eu não sei, mas pode ter uma certa verdade nessa lenda. Você acha que as pessoas começam a se gostar do nada? Ou que pessoas que ficam juntas a vida inteira fazem isso por mero acaso? Talvez estamos passando ao lado das nossas almas gêmeas todos os dias dentro do ônibus, só não percebemos porque não enxergamos o fio.

E assim os dois garotos continuaram a conversar sobre outros assuntos, logo depois falando de fantasmas e espíritos, talvez impelidos pelas lendas obscuras da mitologia chinesa. Gargalhavam de um jeito que apenas as crianças e adolescentes são capazes de fazer, e narravam histórias, atestando veracidade, de aparições e assombrações. Falsas ou verdadeiras, quem se importava? Eram dois colegas iniciando uma amizade, e bem provável que, no futuro, iriam se lembrar saudosistas dessas conversas dentro do ônibus após os estudos.

Já dizia o escritor Robert M. Pirsig, autor de Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas: "Vivemos participando, despercebidos, de alguns instantes da vida dos outros". Assim foi naquele dia, ouvindo a conversa dos dois garotos e me identificando com suas declarações juvenis. É uma pena tantas vidas passarem pelas nossas todos os dias, e nada podendo ser feito, mesmo que possamos nos sentir tão próximos. Bem, pelo menos é essa a sensação. Talvez fosse melhor começar a agir, do que esperar o fio vermelho de nossos dedos se tornar visível para encontrarmos a pessoa certa.