O cotidiano, perante os olhos da maior parte das pessoas, tende a prevalecer como algo banal. São fatos considerados como dispensáveis de um segundo olhar, desprovidos de sentimento, que não despertam o interesse. Seja pela falta de conveniência e identificação para a maioria dos indivíduos, ou por ser cogitado o mundo extraordinário e o incomum como os que possuem mais a contar, as pessoas não creditam o valor merecido para o que é possível perceber no dia a dia. Para Eliane Brum, porém, o extraordinário está em todos os lugares, bastando apenas perceber. Mais do que tudo, o extraordinário está em A Vida que Ninguém Vê.

Formada em Jornalismo, Eliane Brum recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem, contando também com um prêmio Jabuti e prêmios cinematográficos. Sua escrita delicada e sensível se destacou desde o início de sua carreira, chamando a atenção e encantando os leitores nas redações em que trabalhou, como a do jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul, e durante sua permanência na revista Época, de São Paulo. 

O livro A Vida que Ninguém Vê, lançado em 2006, reúne uma série de crônicas-reportagens que a jornalista publicou no jornal Zero Hora, no final dos anos 90. São diversas histórias reais, retiradas do cotidiano, narrando acontecimentos que normalmente não se tornam notícias e protagonizados por pessoas que não são celebridades. Nas mãos de Eliane Brum, porém, cada personagem se torna único, descrevendo histórias a princípio simples, mas que, a partir do ponto de vista da jornalista, ganham um ar excepcional e ímpar, se aproximando de livros de ficção e fantasia.

Como o próprio título enuncia, o livro narra a vida de pessoas desconhecidas, que se perdem em meio à multidão e são ignoradas pelos indivíduos mais privilegiados da sociedade. São pessoas que possuem muito o que contar, mas que nunca ganharam voz. Personagens da vida que estão pelas ruas, em todas as cidades, mas que não recebem o valor que merecem. Eliane Brum parte do pressuposto de que todos os indivíduos são extraordinários à sua maneira, toda história pode ser um épico e, seja qual for a pessoa, ela pode se tornar um herói. Basta apenas deixar os estereótipos de lado e encarar a vida de cada um como elas verdadeiramente são: dramas anônimos de grandeza comparável aos épicos universais.

Entre os personagens expostos está Adail José da Silva, que poderia ser apenas mais um carregador de bagagens no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Uma vida como todas as outras, desde 1963 trabalhando arduamente para sustentar a mulher e os três filhos, vivendo uma existência simples e recebendo o grito "Ô, negão" pelos que passavam pelo aeroporto para viajar pelo mundo. Mas a paixão de Adail pelos aviões, e seu sonho de voar, mesmo sem nunca ter voado, o transformou em um personagem de uma história de grandiosidade e fascínio. A esperança movia seus passos, e mesmo estando a poucos metros dos aviões, o sonho de voar estava muito longe de ser alcançado.

Até mesmo objetos tornam-se personagens na mão da repórter. Um álbum de fotografias, antigo, esquecido no lixo, é encontrado por Venise de Menezes e transformado em uma esfinge pronta para ser desvendada. As fotografias são povoadas por personalidades desconhecidas, que não fazem sentido algum para quem não as conhece, e que não mais desempenham o papel de recordar quem as observa. O mais importante é o mistério que passa a existir, deixando vivas as lembranças de quem já se foi, de quem não volta mais e quem talvez nunca será descoberto. Elas representam, no entanto, lembranças de uma existência que permanecem enraizadas no mundo enquanto o álbum existir, tocando a vida de quem vê de fora.

Além de Adail José e o álbum, A Vida que Ninguém Vê, ao longo de seus capítulos, apresenta uma série de outros personagens, marcantes e notáveis, cada um a sua maneira. Entre eles, duas idosas que moram em um asilo, e passam a fazer arte para tentar mudar suas realidades; um senhor de 90 anos, sem passado, sem futuro, que mora nas ruas da cidade de Anta Gorda e ganha a compaixão dos moradores; o grande Homem de Aço, que come vidro mas sente medo de todos; e até um zoológico, com animais que se humanizam ao estar em cativeiro. São essas histórias, dentre outras, que Eliane Brum se utilizada para construir um mundo próprio e único.

Mesmo com toda a beleza apresentada nas reportagens, e a grande veia poética presente durante todo o desenrolar da escrita, o objetivo da autora vai muito além de apenas expor a vida destes pobres desafortunados. Suas palavras são um protesto perante as injustiças do mundo, e uma tentativa de evidenciar o que a maioria ignora ou tenta ignorar. Como são histórias reais, dramáticas, e Eliane Brum é a testemunha de todas elas, cabe à autora expor seus infortúnios, mostrar ao mundo que mesmo optando por não enxergar o sofrimento, não quer dizer que ele não exista. O grito dos personagens passa a ser o seu próprio.

Com A Vida que Ninguém Vê, Eliane Brum convida todos os indivíduos que leem suas palavras a se encantar com a vida, em sua forma mais pura. A vida dos considerados ordinários, dos desinteressantes, dos invisíveis. Mas vidas dos que são únicos, excepcionais, excêntricos, dos que possuem muito o que contar. Basta apenas firmar o olhar, passar a enxergar do ponto de vista certo, e se encantar com a beleza dos ignorados.