As cortinas da história seriam abertas em uma noite fria de dezembro, descortinando uma casa escura e lúgubre onde uma chaminé despejava fumaça negra pelo céu. Seu interior escondia o protagonista, de pele morena, olhos observadores, cabelo crespo e uma boca grande e vermelha. Próximo à data de partida para longe, com as costas pesadas pelos 30 anos recém completos, ele estaria amargurado com a vida e o mundo, sentindo pelo corpo os efeitos de uma semana incessante usando todos os tipos de drogas possíveis.



Naquela noite fria de dezembro, enquanto nosso homem virava garrafa após garrafa e tentava encontrar esperanças no amarelado da cachaça, três personagens fariam uma visita surpresa à casa escura. O primeiro seria um amigo do passado, aquele corpulento e simpático, para mostrar ao protagonista todos os momentos felizes já vividos, mesmo em meio às dificuldades. O segundo personagem seria um amigo do presente, aquele tímido e estranho conhecido da faculdade, incumbido de mostrar ao protagonista tudo o que ele estaria perdendo por ir embora. E o personagem número três seria uma amiga do futuro, aquela de capuz preto, inevitável, que estaria esperando em algum ano obscuro caso a viagem fosse feita. 


O protagonista então cairia em si, percebendo que partir para longe não significaria a resolução de nenhum de seus problemas. A partir desse insight, decidiria continuar onde estava, mudaria sua postura de vida até chegar ao sucesso e todos ficariam felizes, em uma casa agora cheia de luz e cores. As cortinas da história se fechariam e então seria o fim. 

Contextualizando o óbvio: a história seria uma adaptação livre de “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens. Nada original. 

A quem queremos enganar? Não estamos na Inglaterra do século XIX, mas no Brasil do século XXI. Em dezembro, nosso protagonista estaria em casa de cuecas, desprovido de toda dignidade e molhando tudo o que tocasse com seu suor. Provavelmente do lado de fora da casa estaria caindo uma chuva forte, os bueiros da cidade estariam obstruídos e, provavelmente, muitas ruas estariam alagadas. Tudo isso enquanto um grande número de pessoas saía de lojas com sacolas e mais sacolas de presentes nos braços, após pagar um preço muito maior do que pagariam se a compra fosse feita alguns dias antes. 

Poupe-me das chaminés: em nossa cidade de calor infernal, o fogo estaria apenas no coração amargurado do protagonista – e aí, sim, está uma verdade em nossa história. Nosso homem de 30 anos recém completos carregava um peso nas costas, mas de dificuldades dificilmente encontradas nas páginas dos livros. Não podia chorar por precisar se mostrar forte dia após dia, sendo o colorido que brota do asfalto sufocado por tanto cinza. Perdeu tanto, perdeu tantos, que se acostumou a ver passar figuras pela rua e deixou de recordar seus nomes. Não deveria. 

Nosso homem realmente bebia, realmente se drogava. Quer melhor diversão? Saía pelas ruas nas madrugadas procurando aquela luz amarela convidativa, com um sorriso no balcão e uma bebida gelada a um palmo de distância. Enquanto a burguesia intragável se reunia feito insetos nas lâmpadas fluorescentes e sem vida, nosso protagonista era atraído pelo fogo antigo emanado dentro de cada desconhecido. Aquele fogo que chama quando está longe, acalenta quando está próximo e queima quando está perto demais. 

E nessa procura louca por mais e mais calor, o protagonista sem dúvida estaria chamuscado, mas não pelas chamas de uma fogueira de vida, mas pelas labaredas de tudo o que queimava dentro de si. Ele decidiu então partir para longe para encontrar um novo começo e um novo destino, mais ameno do que o presente e com mais opções para se drogar e se embebedar do que sua cidade atual. Deixemos o romancismo de lado: mudar de cidade não é solução para uma vida melhor se a mudança não começa dentro de nós mesmos, seja lá onde estivermos. 

E assim encontramos nosso homem em casa, olhos arregalados pela insônia, mal humor, ânsia em partir para longe e impaciência por se ver livre dessa merda de cidade. E é aí que a campainha toca pela primeira vez – nada de visitantes chegando pela janela ou caindo da chaminé. 

O primeiro personagem seria uma pessoa do passado, sem rosto e de todas as cores. Como trazer apenas uma pessoa, amiga ou inimiga, se o passado carrega tudo e todos aqueles que ajudaram a moldar o protagonista? Ele seria a mãe trabalhando e sofrendo à distância, o irmão sendo cuidado na beira do rio, a casa em chamas. Seria uma barraca de acampamento azul, a fome diária e o vizinho morto na porta de casa. Seria as festas de família, o sexo em lugares improváveis, as noites despertas pela alegria. O primeiro personagem não seria um amigo para apenas dizer aquilo que deveria ser dito, mas as lembranças – inevitáveis e necessárias. 

A história original não faria sentido, principalmente, pelo segundo personagem. Aquele tímido e estranho da faculdade representava apenas isso, um personagem secundário tímido e estranho. Mas sua teimosia era tanta que não seguiria o roteiro, não obedeceria às letras escritas e ganharia seu próprio caminho. E nosso protagonista perceberia isso, de canto de olho e surpreso. Assim, o segundo personagem não seria apenas um mero secundário, mas o amor – um tapa na cara inesperado e arrebatador. 

Por fim, a terceira personagem seria mais baixa do que se esperava: uma criança. Negra, com maria-chiquinha balouçante, vestido de festa e inteligência fora do normal. Ela não diria nada pois ainda não falava e nem existia, era apenas um sonho concebido na mente do protagonista e de seu amor, sem dúvida um delírio de cachaça. Mas a pequena existia no coração do protagonista e ele faria de tudo para torná-la realidade – ela seria seu doce e feliz futuro. Da encapuzada inevitável já somos certos, ela que vá procurar outra história para incomodar. 

A visita de um passado concreto, um presente possível e um futuro cobiçado, tudo somado ao efeito do álcool, das drogas e, claro, de um pouco de loucura, fizeram com que o protagonista caísse em si e percebesse que fantasmas podem não existir apenas nos livros de Charles Dickens, mas também na vida real. E um fantasma do passado pode ser assustador, mas não há nada mais temível do que um fantasma de um futuro não concretizado, um espectro do que poderia ter sido. E nosso homem decidiu pegar seu segundo visitante para si e, quanto à terceira visitante, torná-la uma visitante real e para todo o sempre. 

Nada sei se o protagonista realmente colocou em prática seus desejos, se voltou atrás e viajou para longe ou se naquela mesma noite morreu afogado em vômito ou de overdose – isso é uma história para outra ocasião. O que sei é que ele é um homem real, como eu e você, e que perdeu seu posto de protagonista assim que entendeu que não estava sozinho no mundo, mas com pessoas por quem lutar. 

Da mesma forma que seu amor tímido e estranho era o protagonista de sua própria história, a terceira visitante também o seria, no momento em que ela passasse a existir. Apesar do protagonista caído ser mais um personagem perdido nas ruas de perdição da vida, para muitos ele será o protagonista de aventuras, de histórias de amor e, claro, o personagem ideal com quem desbravar o mundo atrás de uma desculpa para ser feliz.