O quebra-cabeça de Joaquim da Costa
Peça 1: A família excêntrica da cidade


Muito tenho a contar sobre minha infância, passada na cidade de Luz, no interior de Minas Gerais. Em um município com menos de 20 mil habitantes, onde nada acontece, as pessoas tendem a ser caricaturas de si mesmas e vivem suas vidas ao sabor dos dias, dedicadas a colecionar posses inúteis e sem se importar muito com o resto do mundo. Mas ao contrário de meus conterrâneos, desde cedo aprendi a me preocupar com outras questões além da material – e iria me preocupar mais do que devia, aliás.

Assim como toda cidade interiorana, Luz guardava dois lados distintos de uma mesma moeda. Por um lado, era o paraíso por seu silêncio, segurança e tranquilidade, por suas ruas desprovidas do trânsito infernal das capitais e por oferecer a possibilidade de sentar do lado de fora de casa, em um banco feito de tronco de árvore cortado, e conversar por horas com os vizinhos; por outro, era o inferno por seu silêncio constante, por suas ruas desprovidas de qualquer atrativo cultural e pela impossibilidade de sentar do lado de fora de casa sem ser importunado pelos vizinhos. É por isso que me apaixonei imediatamente pelo anonimato proporcionado pela cidade grande quando finalmente deixei Luz.

Cresci em uma família cheia de amor e considerada a excêntrica da cidade, já que meus pais, Isabela e Miguel, deixavam os filhos soltos e proporcionavam toda a liberdade para fazermos o que quiséssemos. Enquanto os filhos da casa vizinha, os Silva, podiam chegar apenas à varanda e eram proibidos até mesmo de ir à nossa casa, eu e meus irmãos éramos os donos da cidade, correndo pelas ruas até altas horas da noite e fazendo das plantações de cana de açúcar que rodeavam Luz o nosso próprio parque de diversões.

Caçula de três irmãos, sempre brinquei, corri, ralei o joelho e subi em árvores, mas o que mais levava felicidade para meus dias era deitar na rede da varanda para ler. A paixão pelos livros foi estimulada principalmente por minha irmã Mariana, a filha número 1, que desde cedo lia para mim antes de dormir e me emprestou a maior parte de seus livros de infância. Não à toa maninha se tornou bibliotecária em minha escola, não sendo raras as ocasiões em que eu matava aula para conversarmos sobre livros.

Meus pais eram o sonho de todo filho adolescente, embora eu perceba um certo distanciamento observando o passado tantos anos depois. Enquanto meu pai personificava a diversão em cada gesto, sendo famoso na cidade por ser beberrão, piadista e espirituoso, minha mãe era mais séria e comedida, a professora querida de Luz e especialista em gramática. Um ano após o nascimento de Antônio, o filho número 2, papai deixou o trabalho na fazendo de meu avô, mamãe deixou as salas de aula e, juntos, inauguraram em 1989 o maior e mais famoso bar e restaurante da cidade, que até hoje atrai moradores dos quatro cantos de Minas: o Recanto dos Costa.

Entretidos e atarefados pelo ofício, meus pais acabaram delegando a tarefa de criação dos filhos para tia Anita, tia de papai e viúva solteirona da cidade, que ganhou um quartinho ao lado do de Mariana assim que Bento, o filho número 3, nasceu em 1990. Doze anos mais velha do que eu, Mariana também teve parte essencial em minha criação e, ao lado de tia Anita, desempenhou um papel materno e paterno que mamãe e papai jamais conseguiram superar.

Minha relação com meus outros dois irmãos sempre foi marcado por forte camaradagem na infância, embora a adolescência tenha chegado para afastar-nos para sempre. O bonito Antônio, de cabelos longos e sempre desempenhando o papel de rebelde da família, despedaçou tantos corações luzenses que, pouco antes de partir para longe, era impedido de se aproximar de qualquer jovem de respeito da cidade. Já Bento, o filho número 3, carregava os olhos verdes de vovó e nunca foi de falar muito, se aprazendo mais com os carros da oficina em que trabalhava do que com outros seres humanos. Não muito diferente de mim, que me perdia nos livros e esquecia do mundo.

Em meio a uma família normal e uma cidade extremamente comum, eu, Joaquim, nasci em 1994 no dia 17 de outubro. Se meus irmãos chamavam a atenção pela inteligência, atributos físicos e habilidade mecânica, eu nunca desenvolvi grandes habilidades e jamais desempenhei outro papel além do de leitor da família.

Mesmo tendo uma infância como a de tantos outros, percebi na adolescência que era diferente de todos em casa e, nos anos seguintes, carregaria o fardo de ser único – no pior dos sentidos. Ainda não consigo delimitar qual foi o momento em que tudo deu errado para mim, mas em 2012, com o diploma do Ensino Médio nas mãos e uma tristeza sem fim, fui estudar em Belo Horizonte, capital mineira, e nunca mais voltei a Luz.