Histórias, fatos e acontecimentos percorrem meus pensamentos. Percorrem, não, se chocam. Lembranças colidem umas contra as outras, junto a situações que se esbarram e episódios que se destroçam. Fecho os olhos e imagino minha mente, uma biblioteca enorme, cheia de estantes, galerias, corredores, poltronas confortáveis e livros, muitos livros. Perambulando pelos corredores, lá está eu. Não apenas um eu, mas vários eus. Tamanha é a desordem de meus pensamentos que meus eus ali se mostram tresloucados. Correm de um lado para outro, trombando em estantes, se jogando sobre livros, rasgadas páginas e gritando. É tão assustador que estremeço.

Se pensar em uma biblioteca real sendo destruída desse modo já é angustiante, imaginar meu cérebro sendo tratado desta maneira por mim mesmo causa um peso no peito. Um peso tão grande que dói, dói de verdade. Mas assim como mágica, algo acontece. As bibliotecárias com quem convivi durante toda a minha vida aparecem em minhas lembranças. Rostos bondosos, olhares vibrantes e sorrisos cúmplices que apenas os amantes dos livros podem dar entre si. Mulheres prontas para organizar toda uma biblioteca, até mesmo uma biblioteca mental.

As bibliotecárias empurram a grande porta de entrada para o saguão, tão antiga e não usada que se mostra dura e quase impossível de abrir. Mas com muita força de vontade, mais vontade do que força, todas elas juntas abrem a porta. Meus eus correm de um lado para outro, tão fechados em seus mundos caóticos que nada veem, nada escutam, nada sentem.

A primeira a tomar uma atitude é a velha e gorducha bibliotecária de minha infância. Segue andando pelo corredor e segura o primeiro eu que encontra, aquele que derrubava livros com tamanha determinação e ferocidade que chegava a causar medo. Passa então a mão em seus cabelos, dando um sorriso tão bondoso e tão encantador, tirado bem do fundo da alma e da graça, que meu eu abobalhado pisca os olhos e sai como de um transe. Volta à sua atitude tranquila de sempre, sorri para a bibliotecária e começa, ajudado por senhora tão cortês, a arrumar os livros que segundos antes estava tão empenhado em derrubar.

Após esse primeiro episódio, cada bibliotecária se dirige a um de meus eus para acalmá-los. Meu eu gritante se silencia com um abraço. Meu eu rasgador de livros interrompe seus atos com um leve sussurrar nos ouvidos. Meu eu chutador de poltronas para de imediato ao ouvir uma antiga canção. Assim, um por um, meus eus se acalmam todos, e ao lado das senhoras, começam a arrumar a biblioteca. Juntam páginas, devolvem livros aos seus lugares, levantam cadeiras. Até que chega o momento em que a paz volta a reinar, e cada bibliotecária dá um sorriso puro de dever cumprido. E todos os meus eus que ali se encontram também sorriem. Na verdade não sorriem, gargalham. Batem palmas, assobiam.

Como que atraídos por tal barulho, rostos curiosos começam a espreitar pela porta, que havia sido deixada aberta. São rostos de pessoas amadas, deixadas de fora da biblioteca devido à grande algazarra que reinava por ali. Meus eus, tão educados como não poderiam deixar de ser, pegam pelas mãos cada uma daquelas pessoas e as levam para dentro. Mostram a elas os livros, os corredores, as poltronas confortáveis. Minha biblioteca, tão particular e exclusivamente montada, vai ganhando aquele ar de aconchego, de morada, onde qualquer um pode ser bem-vindo. Basta apenas merecer.

E eu, o senhor supremo de toda aquela biblioteca, mantenho os olhos fechados e o sorriso nos lábios. Com uma mente mais sã, continuo a escrever.