Romualdo amava Cigana, aquela jovem com cicatrizes pelo corpo que usava panos e mais panos para se esconder. As finas marcas se espalhavam por seu rosto e braços, consequência de um acidente de carro quando era apenas uma garotinha. Mas não importava quantas cicatrizes possuía, nem o quanto tentasse se esconder, ela ainda continuava linda, principalmente passando sonolenta pelo ônibus no início da manhã.

Cigana amava Barbicha, um jovem barbudo e desengonçado que saía apressado do ônibus em uma das avenidas mais movimentadas da cidade, e corria mais do que deveria. Ele impressionava: não apenas conseguia dormir em pé no ônibus, como também era capaz de ler em pé, não importando o tamanho do livro. Suas obras raras de Machado e Drummond também impressionavam.

Barbicha amava Batom, aquela gordinha loira, sempre com os lábios grandes pintados de cores fortes, que era enfermeira em um hospital. Em casa, um gato e dois papagaios a esperavam, que eram adestrados e faziam sucesso na internet. Sentada no ônibus no caminho para o trabalho, ia planejando novos vídeos para os animais e tentava adivinhar quantas vidas iria ajudar a salvar no hospital.

Batom amava Ferrugem, um homem cheio de espinhas pelo rosto e que às vezes falava no celular dentro do ônibus, com todos parando para ouvir. Suas espinhas eram tristes, pois retiravam qualquer traço de beleza que ele poderia possuir, mas sua voz compensava todo o resto. Era grave, profunda e hipnotizante, e colocava para trás qualquer galã de cinema.

Ferrugem amava Marcelina, aquela moça que sempre jogava jogos no celular para passar o tempo. Ela era baixa e seus pesinhos com sapatos vermelhos, simples e surrados, ficavam no ar quando se sentava. Ela guardava uma longa lista de reclamações, mas o trânsito, o trabalho e toda a vida em si, eram os principais motivos para se lamentar.

Marcelina não amava ninguém, pois como estava sempre reclamando ou com os olhos no celular, não percebia nada ao seu redor. Não via o amor que o ônibus carregava para os quatro cantos da cidade, tão intenso quanto uma dança rápida.

Romualdo ficou noivo de sua vizinha, pois era isso o que seus pais queriam, e era isso o que deveria acontecer. Mudou para a Europa para se encontrar, mas tudo o que encontrou foi tristeza e solidão. Passou a vida em um casamento sem sentido, amargurado, descontando sua frustração na mulher e nos filhos, que apanhavam sempre do homem da casa e não tinham coragem para revidar.

Cigana se sentiu cada vez mais infeliz com suas cicatrizes, e nem mesmo os panos ajudavam mais a se esconder. Andava pela cidade quase como uma múmia do Egito. Um certo dia deixou de sair de casa, e decidiu estar para sempre trancafiada em seu quarto, rezando e pedindo a Deus uma luz. Sem nunca mais ver o sol, a única luz que conseguiu foi a das lâmpadas pela casa.

Barbicha, sempre andando rápido demais e veloz além do que deveria, não percebeu um carro ainda mais apressado do que ele e foi atropelado. A princípio, tudo ficou vermelho, assim como seu sangue escorrendo pelo asfalto, que ao contrário de Barbicha escorria devagar. Em seguida, tudo ficou negro, como seria a lembrança da rua e da sarjeta fatal para sempre.

Batom continuou amando muitos homens pela vida, assim como suas vozes. Mas amava tanto, e com tal intensidade, que nunca conseguiu consolidar nenhum desses amores. Os papagaios morreram e ao gato se juntaram outros 12, que nunca protagonizaram nenhum vídeo na internet.

Ferrugem nunca foi mentalmente estável, pois ele não conseguia encontrar equilíbrio em ter uma má aparência e uma das vozes mais belas da cidade. Quando um relacionamento longo e turbulento chegou ao fim, não conseguiu suportar. Saiu do ônibus certo dia e andou pelos bairros, procurando. Procurou e achou uma ponte velha, de onde se jogou sem olhar pra trás.

Marcelina teve o celular roubado na rua em um dia quente, e saiu correndo atrás do ladrão. Ao correr, reparou que existia o vento tocando seu rosto, a grama macia sob seus pés, e pessoas ao seu redor. Deixou de se lamentar, começou a observar o mundo a sua volta, e nunca mais teve um celular. Conheceu Dionísio R. Leal certo dia no ônibus, se apaixonou e se casaram em um dia 27 de março. Ela foi feliz, na medida do possível.