Era uma vez um pessegueiro, pessegueiro como todos os outros do mundo. Flores roxas, raízes curtas e uma grande satisfação por dar frutos. Tudo ia bem até o dia em que ouviu sobre o empoderamento arbóreo, decidindo então romper com as amarras das leis da natureza. Aquele pessegueiro queria ser livre para fazer o que quisesse, e em uma manhã de sábado começou a dar maçãs.

A primeira maçã nasceu a partir de uma flor azul-anil, tornando-se grande, vermelha e suculenta. Poderia ser a herdeira de uma prole brilhante, mas era a ovelha negra da família: sentia tanto horror de ser filha de um pessegueiro que dava maçãs que preferia a morte a estar ligada aos galhos maternos. Ao avistar uma lagarta subindo o tronco lentamente, ficou feliz pela possibilidade de ser devorada.

A lagarta era tímida e andava de mansinho. Andava? Saracoteava? Existia? Ser ou não ser? Eis a questão: ela era filósofa e adorava discutir sobre Descartes, Freud e Judith Butler. Achava que seria para sempre uma lagarta, pois considerava o mundo um enigma e dificilmente atingiria a maturidade plena para ser borboleta. Mas ver um pessegueiro parir uma maçã impactara tanto sua mente e sua fisiologia que virou uma borboleta em uma explosão de luz.


Aquela nobre e bonita explosão de luz não era um indivíduo e nem um ser palpável, passível de ganhar nome e sobrenome. Mas por nascer da maturação de uma lagarta e da explosão de uma borboleta, possuía a consciência necessária para deixar a efemeridade para trás e continuar existindo. Existiu como um ponto de luz que foi ao chão e rolou pela grama macia, chamando a atenção de um garoto que passava por ali.

O garoto possuía uma alma triste, que o impossibilitava de tomar uma série de decisões e ações mundanas. Percebeu a luz e desejou senti-la entre as mãos, mas ela rolou para longe antes que pudesse chegar mais perto. O fato deu início a uma série de pensamentos autocríticos e depreciativos, fazendo com que o garoto indagasse se não deveria largar o emprego, mudar de cidade e vender pêssegos por outras vizinhanças.

O pessegueiro deu origem a bonitas e deliciosas maçãs durante 34 dias, até perceber que tais filhas eram ingratas e malcriadas. Nos anos seguintes, presentearia o mundo com goiabas dramáticas, alfaces amarguradas, aspargos esperançosos e toda a sorte de frutas, legumes e verduras que sua imaginação ousasse imaginar. O céu era o limite para um pessegueiro determinado a deixar seu legado.

A maçã não foi devorada por uma lagarta, por um ser humano e nem por qualquer outro ser vivo que ousara pisar por ali. Derrubada do galho por tamanha ingratidão, sua punição não foi morrer, mas viver para sempre sendo corroída por seu preconceito. Viveu aos pés do pessegueiro, vendo-o se reinventar e parir todos os tipos de filhos que quisesse, enquanto era corroída pelo tempo e apodrecia pouco a pouco.

A borboleta que era lagarta saiu pelo mundo oferecendo dicas filosóficas a quem precisasse. Quando os conflitos humanos tomavam conta de mentes cansadas, ela sussurrava ensinamentos filosóficos e desejava a boa sorte para todo o sempre. Às vezes realizava boas ações, mas nem sempre a roda da fortuna colaborava. Um dia botou três ovos, dando origem às lagartinhas Hume, Boeci e Montaige.

A luz estava feliz por existir por conta própria, sem depender de um objeto físico para continuar seus dias. A felicidade fugiu quando percebeu que um dia deixaria de existir. Ainda que a luz fosse eterna, o mundo chegaria ao fim. Ainda que o mundo fosse infinito, o universo continuaria se expandindo até tudo ser consumido. Os questionamentos eram grandes demais para uma pequena luz como aquela, que se extinguiu em dois milésimos de segundo.

O garoto levantou do chão e ouviu uma voz desconhecida dizer: “As coisas existem porque nós lhe damos significado”. Isso não mudou seu destino, mas o ajudou a ter coragem para focar no que realmente possuía significado para ele. Não saiu do emprego, mas fez amizades que amenizaram seus dias. Não mudou de cidade, mas construiu seu próprio lar em um bairro tranquilo. E não vendeu pêssegos, pois o único pessegueiro que conhecia começou a dar maçãs.