Duas mulheres, às margens de um lago de águas claras, discutem a saudade de casa e os desejos que queimam o peito como brasa em fogo. Naturais de Lisboa, elas vivem em Belo Horizonte, Minas Gerais, e se perguntam do que mais sentem falta. “Do mar”, diz uma delas. Entrar no mar quando quiser; deixar o sal cobrir o corpo; lamber os braços e sentir o gosto puro do sal; experimentar o sal por toda a carne. Entre as inúmeras preciosidades deixadas para trás, elas escolhem o mar: a imensidão, a exorbitância, o ritmo raivoso. Você entra nas águas e elas continuam em você. É como o lar, que não abandona os corações jamais.


As mulheres são Teresa e Francisca, personagens principais do filme “A Cidade Onde Envelheço”, de Marília Rocha. O enredo aborda a vinda de Teresa ao Brasil, que chega ao país para morar com Francisca, amiga de longa data. A campainha toca, as malas são colocadas no chão, o clima é de estranhamento. Afinal, Francisca mora em terras brasileiras há um ano, acostumada com a liberdade da solidão. Mas antigas lembranças, expressas em uma fotografia de infância, trazem conforto e amizade estampada em sorrisos. Está traçado o passado. O que resta é o presente e um futuro incerto.

Um dos diferenciais do filme é sua espontaneidade, apresentada em diversas cenas. Com um enredo sem cenas de ação significativas, existem apenas duas mulheres comuns, vivendo seu dia a dia rotineiro. Uma das cenas apresenta Francisca ao fim do expediente de trabalho, após um dia cansativo no restaurante em que trabalha. Todos os empregados estão cansados, sentados e cabisbaixos. Mesmo com o cansaço do corpo e da mente, não pode haver espaço para corpos estáticos. É preciso se levantar para não cair. Francisca coloca uma música animada e chama todos para dançar. É possível ver a alegria, os olhos brilhando. Todos precisam de uma dança, mas, principalmente, todos precisam de um convite para dançar.

A espontaneidade é embalada por um elenco iniciante, mas bem escolhido: Elizabete Francisca Santos e Francisca Manuel, as duas jovens atrizes portuguesas, viram em “A Cidade Onde Envelheço” uma chance para se aventurar no mundo do cinema pela primeira vez. A pouca experiência não interfere nas ótimas atuações, mas dão um ar ainda mais espontâneo às cenas, fazendo com que o filme pareça mais um documentário do que uma ficção. É a vida, pura e simplesmente, com personagens prontos a saltar da tela e andar pelas ruas.

Outro ponto que chama a atenção são os cenários, gravados em Belo Horizonte. O lar de Francisca é o Edifício Vila Rica, no centro da capital mineira, e ver o cotidiano da cidade, as manias dos belorizontinos, é algo singular para quem vive ali. BH está exposta nas pessoas que passam pela rua e pedem cigarro para qualquer um que passa. “São folgados e amáveis”, afirma Francisca. Está nos azulejos do banheiro com estilos e cores diferentes, seja pela falta de dinheiro para uma nova compra ou por não haver azulejos suficientes de um mesmo estilo. Está no bar em que uma pessoa entra sem conhecer ninguém, mas que reúne amigos para a vida a toda.

O filme é cheio de sentimentos. Primeiro lá está o amor, e não apenas o amor do beijo molhado ou do sexo ardente. É o amor de olhares compartilhados, de mãos que se entrelaçam, da vontade de estar junto. O amor da amizade. É um filme formado também pela saudade, principalmente da saudade de casa. Aquela deixada escondida no fundo do peito, fingindo que não está lá. Mas que um dia, quando um pedacinho de casa chega por perto, ela explode, ressoa e quer sair. 

Com um roteiro sem uma aparentemente história definida, a proposta de “A Cidade Onde Envelheço” é revelar pouco a pouco a rotina das mulheres. Suas ações, seus hábitos e seus amores, ainda que fatos banais da vida, são descortinados perante o público e revelam uma vida como a de todos nós. Banal em sua amplitude, excepcional em sua essência. É ouvir uma notícia triste e não saber o que fazer, então você pega uma faca e um garfo e começa a batucar por móveis e paredes, como uma forma louca de aliviar a tristeza. É ir ao banheiro do bar e pedir para uma pessoa qualquer que está bebendo para olhar sua mochila. Ao voltar e encontrar todos os objetos no lugar, você percebe que existem pessoas boas no mundo. É passar a noite na farra e chegar em casa de manhã, descendo do carro com uma lata de cerveja na mão. O mundo está aberto a múltiplas possibilidades, cabe a cada um escolher o que fazer.

A música Soluços, de Jards Macalé, compõe a trilha sonora do longa e expressa bem todos os seus sentimentos: “Quando você me encontrar, não fale comigo, não olhe pra mim. Eu posso chorar”. Nós não escolhemos onde vamos nascer, mas podemos escolher onde vamos envelhecer. Entre amores e saudades, a cidade onde envelhecemos é aquela que nos faz feliz. É aquela em que o amor está. “Meus olhos ficam vermelhos e irritados; eu ainda não comprei meus óculos escuros”, canta Macalé, de olhos abertos ou fechados.