Certa vez, Kafka disse a um amigo: "No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo?”. Obras clichês nos confortam, mas sem aquelas que nos incomodam e nos fazem pensar, perdem seu caráter primordial. Mario Vargas Llosa, escritor peruano ganhador do Nobel de Literatura, convida os leitores sempre ao raciocínio e à reflexão, com livros como “Travessuras da Menina Má” e “Pantaleão e as Visitadoras”. Já em “Elogio da Madrasta”, o autor mescla o pensamento crítico ao incômodo, causando asco, assombro e, principalmente, prazer.

Don Rigoberno é um viúvo rico em Lima, recém-casado com sua nova esposa, Lucrécia, mulher de meia idade dotada de extrema beleza. O casal vive uma rotina feliz, regada a sexo, desejos constantemente atendidos e a criação do filho de Don Rigoberto, Alfonso. Apesar da pouca idade, o garoto parece demonstrar uma paixão inapropriada pela madrasta, até o dia em que Lucrécia percebe que os beijos e olhares de ‘Fonchito’ demonstram muito mais desejo do que ingenuidade.

As poucas páginas do livro e a leitura rápida são compensadas pela abundância de significados, nem sempre decifráveis à primeira vista, e as temáticas que chocam o leitor do primeiro ao último capítulo. Pedofilia, promiscuidade, profanação, imoralidade. O que não falta a “Elogio da Madrasta” são elementos que fogem do habitual e são capazes de chocar os leitores mais conservadores. Escritor intuitivo, Llosa emprega palavras com cadência poética para descrever os mais variados assuntos, desde páginas fascinantes sobre o ato de defecar (“Cagar, defecar, excretar, sinônimos de gozar?”), até a beleza do sexo (“Éramos uma mulher e um homem e agora somos ejaculação, orgasmos e uma ideia fixa. Tornamo-nos sagrados e obsessivos”).

Don Rigoberto, o pai, é a busca pela perfeição humana, um ser obcecado pelo cuidado com a aparência e a juventude eterna. Apesar de Lucrécia ser seu bem mais precioso, motivo de seu cuidado exagerado, perde-se em si mesmo e se sente como um rei e um deus perante todos. A cada dia dedica sua atenção a uma parte do corpo: retira pelos que saem das orelhas, que nada escutam; limpa o nariz com sabão, que nada sente. Se desprovido da carne, é um ser queimado, sem membros, com o único propósito de fazer sexo e procurar prazer.

Lucrécia, a madrasta, é a mulher bela que nunca está saciada. É aquela que busca o fruto proibido, apesar de possuir tudo o que sempre sonhou e todos os seus sentidos alertarem para o perigo de suas ações. É a deusa que lança um feitiço em santos e anjos graças à sua beleza, mas que nunca admite ser enganada ou contrariada. É a mulher engolida por sua própria ganância e enganada pela serpente. Sedenta por atenção e cuidado de tudo e todos, morde a maçã e precisa encarar as consequências de contrariar as regras do paraíso.

Alfonso, o filho, é uma criança angelical, ingênua e infantil em todas as suas ações. Sem idade aparente, é jovem como os pequenos que acabam de concluir a primeira comunhão, mas dotado de idade suficiente para ver sua sexualidade despertada. Por trás de palavras dóceis e atos gentis, é aquele que corrompe e quer ser corrompido. É o filho precioso que nasceu para libertar o mundo da devassidão, mas que se perde no pecado. Enquanto representa o fruto precioso, também é a serpente que incita a mordida.

Toda a história principal, narrada de forma concisa e simples, é permeada por trechos das fantasias de Don Rigoberto e Lucrécia, reflexos de seus sonhos, desejos e segredos mais escuros. Rigoberto é o rei, casado com a mais bela das mulheres e sentindo prazer em vê-la transar com outro homem; Lucrécia é a deusa, que se fascina com a união de corpo e alma com um jovem; Rigoberto é o ser deformado e retorcido, em uma vida marcada pela perversão e o desejo sexual; Lucrécia é o quadro da mulher que encanta a todos e desperta o sexo; Rigoberto e Lucrécia são os escolhidos para trazer o filho de Deus ao mundo. Todo o enredo é uma escada, que inicia gloriosa como os sonhos, e decai até se tornar putrefata, marcado pela devassidão. A essência do ser humano.

As interpretações são variáveis, mas nada é simples em “Elogio da Madrasta”. O leitor pode se sentir chocado, mas é inevitável não ter prazer ou se sentir excitado com as palavras tão belas de Llosa sobre amor e sexo. A leitura termina e a releitura futura é quase obrigatória, seja para entender o que não foi compreendido ou resgatar significados ocultos. A vida e a morte do ser humano, com e pelos seus pecados, não são fáceis de compreender. “Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio”, afirma Kafka. “Elogio da Madrasta” é justamente isso: a podridão e a beleza que sempre irão andar juntas, mesmo que incomodem.